Lígia estava com a vaidade saindo pelos poros desde que encontrara uma relação entre os textos de Clarice e Kafka, essencialmente entre "A paixão segundo G.H." e "A metamorfose". Andava com os dois livros pra lá e pra cá, comparando trechos, relendo partes que grifara para postar em alguma rede social. Constatara uma clara in-ter-tex-tu-a-li-da-de. Teria que falar pausadamente essa palavra grande diante da professora de Literatura Comparada de Gêneros Exóticos III. Já tinha até o título do ensaio que escreveria: "Baratas voadoras da República Tcheca - intertextualidades de barriga no chão". Manoel de Barros faria o prefácio (sim, porque já era uma dissertação de mestrado). Terminaria com a famigerada canção do Renato Russo - "e você sabe o que é ter pavor, pavor, pavor de baratas voadoras?". Rússia, Ucrânia e República Tcheca, numa linda conexão do Leste Europeu, o que tornaria a sua tese de doutorado ainda mais underground (porque a França está muito clichê, não é verdade?) Até lá já teria tirado o aparelho odontológico e poderia falar in-ter-tex-tu-a-li-da-de com mais clareza. Lígia Fagundes Varella. E o Lattes mais bonito da cidade.
Mas pobre Lígia... Que desgosto, que desgosto... Já havia escolhido a citação inicial de seu trabalho quando o Jorge Alphonsus de Guimaraens, do Grupo de Estudos Kafkianos, compartilha liricamente no livro das faces a grande descoberta: um poema com 10 cantos e em decassílabos intitulado "Samsa vai dar uma chinelada na barata da Clarice".
E o mundo acadêmico perdia uma obra-prima de poeira, papel, capa dura e letras douradas a ser exposta na estante da pós-graduação da biblioteca da universidade. O seu lugar na prateleira sofre, entregue às baratas!
Primoroso.
ResponderExcluir