Se eu tiver uma filha e, num eventual aniversário, vierem com aqueles milhões de bonequinhas e conjuntinhos de panelas pra ela... Eu juro: que me controlarei pra não bater em ninguém. O mesmo para roupinhas cor-de-rosa e da Barbie. Não dá pra aceitar que condenem minha filha a ser uma dona de casa, magrela e loira que fica em casa cuidando das crianças enquanto o marido (claro, porque minha filhinha tem que ser heterossexual, né?) sai pro trabalho de carro. Se ela quiser ser isso, eu só vou poder pegar minha tristeza, enfiar num canto qualquer e aceitar. O que me deixa puta é que isso seja a norma. Aliás, estou baixando uma regra para aniversário dos meus filhos: é proibido levar presente. Isso mesmo, não corro o risco de ser presa por agressão física (quem sabe daqui pra lá aprendo a controlar minha raiva com gente escrota, com ideias escrotas? - pode ser, o problema é que eu não quero!) e ainda ensino que o importante é o convívio com seres humanos, o compartilhar de sabores e saberes, recepção dos abraços, em vez de recepção de presentes. O aniversário de um filho como a comemoração de mais um ano com ele ao meu lado, ao nosso lado: caramba! como eu não tinha pensado nisso antes? É tão óbvio! Que sentido tem esses aniversários cheios de presentes e músicas idiotizantes? E com meninas vestidas como princesinhas, atrás de bolos com princesas da Disney e todas aquelas poses que mandam a criança fazer para tirar fotos que serão colocadas em pôsteres na paredes de quartos rosas cheios de bonecas... ECA!
Não estou assim à toa! Não é paranóia ou mimimi. Semana passada foi o aniversário da minha prima de 9 anos. 9 anos e já uma consumidora voraz de bens totalmente supérfluos de nossa cultura massificada, massificadora e superficial. Ela estava toda de rosa e afirmava que só gostava de rosa e quando eu perguntava por quê, dizia: "porque é de menina". Rodeada por suas bonecas e carrinhos de bebê - o único carro que ela pode dirigir (aliás, por que dirigir qualquer carro?) - ela posava com sorrisos forçados para fotógrafos e a mãe - orgulhosíssima da sua filhinha (que nem ler direito sabe ainda, pois ninguém tem tempo pra ajudá-la com os deveres da escola) - corria de um lado pro outro para receber convidados e distribuir comida enquanto o maridão ficava na varanda tomando umas "geladas" com os amigos. Acrescente-se que eu nunca vi esse casal trocar um beijo sequer, um carinho sequer, uma demonstração de amor. Eu olhava para essa cena, meio triste, meio puta da vida, e me perguntava como isso podia ser tão natural ali, naquela hora, naquele instante. As pessoas estavam lá, mulheres com "roupa de mulher", homens com "roupa de homem", meninos com "roupas de menino" e meninas com "roupas de menina", cada qual vestindo sua roupa e cumprindo seu papel, conversando seus assuntos, sempre os mesmos, sempre os mesmos. E pronto! É assim que as coisas são. Tinha vontade de sair gritando, de... não, tinha desânimo mesmo, sabe?
E quanto aos brinquedos tipicamente para meninos, não esqueci não. Quando eu era criança, me lembro muito bem de morrer de inveja dos brinquedos que eles ganhavam. Tenho até fotos, eu lá, morta de feliz brincando com os carrinhos de controle remoto no aniversário do meu primo - depois de muito disputar com vários meninos que, já naquele idade, se achavam com mais direito e liderança sobre carrinhos. Os brinquedos deles se movimentam, piscam, fazem barulho e obrigam você a se movimentar também. Tudo que eu queria na minha infância um barco pirata, um nave espacial, pecinhas de lego. Claro que MEU PAI tinha a sensibilidade de perceber o que eu gostava e de me dar trenzinhos, rádios, carrinhos, piões, quebra-cabeças e coisas pra ler e pintar - coisas que, de tão usadas, foram se deteriorando com o tempo, diferente das bonecas, que passaram intactas pela minha infância.
Era uma preferência minha. E aí vem aquela eterna criança incompreendida que todo mundo carrega... Que não sei se faz bem ou faz mal, só sei que ela existe. Será que eu teria sido mais ou menos feliz com esse ou aquele outro? E pra que ser feliz, se às vezes uma dorzinha é uma forma gostosa de felicidade? Aliás, o que é ser feliz? E será que existe, esse "ser feliz"? E porque é mesmo que não abraçamos de vez nossa efemeridade? Por que não afirmamos nossas potências criativas? Por que não as desconstrutivas também? Por que é que em vez de interditar e de classificar tudo segundo normas cristalizadas em instituições, nós não regamos o mundo, os outros e o coração com as coisinhas mais diminutas e des(importantes) de viver para que tudo brote?
Será que eu vou ter um filho que só gosta de se vestir de rosa e brincar de boneca? Ou minha filha que só consegue se divertir com aviõezinhos de papel? Uma preferência por este ou aquele brinquedo não significa uma preferência sexual, uma preferência afetiva (aliás, por que esse nome "preferência sexual", como se isso fosse uma escolha e algo que se faz para todo o sempre?). Significa tão somente uma preferência por este ou aquele brinquedo. O que acontece é que os brinquedos são vistos com olhos sujos dos significados e significâncias que damos a tudo - damos? quem deu esse significado?
Desvirginamos o olhar da criança com uma vontade - agora sim - quase sexual. A gente quer encaixotar o serzinho, assim que ele nasce, em vez de tentar protegê-lo o máximo possível desse processo inevitável de ser podado pelas coisas preexistentes. Liberdade, acho que protege e acho que não existe. Não existe, pra mim, essa liberdade absoluta, claro que não, mas será que não dá pra deixar as pessoas um pouquinho mais em paz? E não dá pra gente, só de birra, fazer o que a gente quer? Será que não dá pra deixar ser?
(Por Herley Lins e Jayane Ribeiro)